
Cultura greco-latina, ditadura na Albânia do século XX e mistérios instigantes.
Embora me pareça ser mais conhecido pela obra Abril Despedaçado, devido ao filme de mesmo nome, o albanês Ismail Kadaré é considerado por muitos críticos como um dos maiores autores atuais, tendo sido indicado diversas vezes ao Prêmio Nobel de Literatura e recebido premiações notáveis. Apesar das condecorações, eu não conhecia o autor e penso que este não deva ser o seu melhor trabalho. Não porque Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek seja ruim, mas sim porque achei algumas passagens da narrativa beirando o tosco. Falarei sobre isso logo.
No caso, este livro, vencedor do prêmio Man Booker International de 2005, narra o início da vida adulta do jovem apaixonado por teatro Lul Mazrek ,que é convocado pelo exército da Albânia para guardar as fronteiras de seu país e impedir que desertores do Estado fujam. Apesar de ser uma ficção, a obra se baseia em eventos verdadeiros, pois a Albânia viveu um período ditatorial comunista (caracterizado por repressão, censura e tortura) durante boa parte do século XX, liderado pelo político Enver Hoxha.
Nesse contexto, Kadaré discorre sobre a vida de Lul Mazrek e o seu cotidiano nas bases militares que guardavam as fronteiras da Albânia, ao mesmo tempo em que apresenta críticas à ditadura comunista vivenciada pelo seu país. Embora tudo isso seja interessante, é somente no momento em que o protagonista conhece a prostituta Violtsa Morina, mulher que é contratada pelo Estado para seduzir homens suspeitos de traição ao ditador, que a trama fica ainda mais envolvente. Uma paixão súbita e violenta termina em consequências misteriosas e trágicas, dando ao livro um ar quase policial (alguns chamariam de thriller).
Entretanto, não são somente os eventos e as reviravoltas na narrativa que devem ser exaltados. Além de toda a contextualização política interessante feita por Ismail Kadaré, a obra dialoga constantemente com a cultura greco-latina, sendo feitas diversas referências a Homero, Virgílio, Tróia e personagens famosos que habitam tal universo. Existe, no texto, muitas cenas simbólicas e que podem ser comparadas com certas passagens de lendas gregas ou de obras épicas, como na Ilíada. A cena do corpo de Heitor sendo arrastado por Aquiles (cena ocorrida no canto XXII), logo após um duelo, é citada mais de uma vez no livro de Kadaré, de forma explícita ou subentendida.
A condução da narrativa de Kadaré é também inspirada em algumas das características dadas por Aristóteles no que diz respeito ao conceito de uma boa tragédia. A tentativa de causar a catarse nos leitores, por exemplo, é claramente percebida quando associamos o terror aos eventos ocorridos com Lul Mazrek e com todo o povo albanês devido à repressão, e a piedade à incompletude do amor entre Lul e Violtsa. Dessa forma, podemos associar esses dois componentes, terror e piedade, a diversos momentos do livro. Outro fato curioso é a questão da escolha de um sacrificado em prol de um bem maior – o cordeiro a ser levado para o abate – elemento também presente nas tragédias clássicas e que faz parte do livro de Kadaré.
Apesar de todas essas informações bacanas, achei que o enredo, em determinados momentos, se torna expositivo demais, como quando o narrador insiste em explicar um pequeno mistério envolvendo um caso de homossexualidade e que já havia ficado claro em diversos momentos da trama qual era a resposta. Outro fator que me incomodou foi a presença de algumas cenas demasiado dramáticas e que me pareceram deslocadas do restante do texto, não correspondendo à maturidade narrativa de Kadaré (talvez o autor quisesse mostrar esse exagero devido à ligação de sua obra com o teatro, em especial o teatro clássico, mas achei que tal suposto recurso não funcionou muito bem).
Em suma, Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek é um livro que nos abre portas para discussões sobre algumas questões sociais e, apesar de ser um pouco tosco em algumas passagens, possui um final que surpreende e um ritmo ágil, digno de um bom suspense.